A história política, por um longo período, foi marcada,
acentuadamente, pelo antagonismo de interesses entre governantes e
governados. Aos governados restava aceitar o status quo ditado pelo
governante ou rebelar-se, quando a opressão atingisse níveis insuportáveis. A
modernidade, introduzindo os conceitos de democracia representativa e de
igualdade política, modificou essa relação. A ideia de soberania do povo
implicava o comprometimento do governante com os interesses da
coletividade.
A secularização da sociedade substituiu a ideia vigente
no mundo medieval de que, acima da autoridade terrena, encontrava-se a lei
de Deus – à qual o governante estava submetido e da qual seu poder
derivava – pela ideia segundo a qual, acima dos governantes, estava a lei
aprovada pelo povo, a que todos, sem distinção, deviam obediência. Esse
ideal, contudo, ignorando a natureza humana, não eliminou os perigos de
abusos cometidos por quem exercia o poder. A vigilância constante do povo
sobre aqueles em quem depositou confiança mostrou-se imprescindível. Sem
esse controle, arbitrariedades poderiam ser cometidas sem maiores
consequências.
Uma das formas mais eficazes de controle é feita mediante
a crítica aos governantes, permitida pela ampla proteção à liberdade de
expressão e de imprensa. Essa liberdade é tida como fundamental, a ponto
de tornar-se indissociável dos governos democráticos. Dela depende, em
particular, a imprensa, que exerce o papel de guardiã da sociedade
(the watchdog of society), como se diz no mundo anglo-saxão, Os
americanos bem entendem a importância da liberdade de expressão para
o funcionamento adequado das instituições democráticas. Prevista na
primeira emenda à Constituição, consideram-na, antes de mais nada, uma
arma dos cidadãos em face do poder do Estado. O argumento de que as cortes
se utilizam por ocasião de ações judiciais que têm como pano de fundo o
conflito entre liberdade de expressão e outro valor é o seguinte: se o ato
expressivo levanta uma questão de interesse público e promove o
debate público – e, por essas razões, a própria democracia – então ele
está protegido pela liberdade de expressão.
Isso quer dizer que a crítica aos mandatários do povo é
amplamente permitida, sendo irrelevante, para o judiciário, o caráter
ofensivo da publicação ou mesmo que haja prova posterior de sua falsidade.
Para que o ofendido, pessoa pública, vença uma causa alegando dano à
imagem, ele deve provar que o jornalista agiu com actual malice
(intenção maldosa), o que não se confunde com a common law da negligência
(negligence). O teste da negligência aplica-se tão somente às pessoas que
não são públicas, ao passo que a actual malice é aplicável às pessoas
públicas, incluindo-se, aí, as que gozam de ampla notoriedade, não se
limitando, portanto, aos governantes.
Para que se caracterize a actual malice, o ofendido deve
provar que o jornalista sabia que a informação era falsa (knowledge that
the information was false) ou que desprezou levianamente a aferição de
verdade ou de falsidade da informação (reckless disregard of whether it
was false or not). Nessa segunda hipótese, o próprio jornalista poderia
ter reconhecido a falsidade da publicação se tivesse considerado com
cuidado as evidências a que teve acesso. Para a constatação disso, os tribunais
analisarão a força dessas evidências ao tempo da publicação com o objetivo
de inferir o estado mental do jornalista e, assim, concluir se ele próprio
tinha sérias dúvidas (serious doubts) a respeito da veracidade da
informação. Trata-se, portanto, de uma análise de subjetividade, cuja
prova, note-se, cabe ao ofendido. Trocando em miúdos, a actual malice foi
criada para tornar extremamente dificultoso o sucesso de ações em que se
discute dano à imagem de pessoas públicas... Leia mais aqui...
Não basta, para a caracterização da actual malice, a
prova de que o jornalista desestimava o ofendido ou de que a versão deste
não tenha sido ouvida de antemão. Também não é suficiente a ciência de que
ofendido houvesse declarado que a informação era falsa, bem como que a
fonte da informação fosse suspeita ou que a informação não tivesse
sido corrigida após a publicação. Tampouco importa a intenção de causar
dano, a despeito disso ser sugerido pela expressão “intenção maldosa”. Em
suma, não se perquire o que uma pessoa razoável publicaria ou que passos
daria para investigar a certeza da notícia antes de sua publicação. Esses
critérios só são aceitos nos casos em que a common law da negligência
(negligence) é aplicável, isto é, quando o ofendido não é pessoa pública.
A figura da actual malice implica o desencorajamento do
chilling effect (ou, literalmente, efeito de esfriamento). O chilling
effect é consequência de paulatinas restrições à liberdade de expressão,
tornando difícil distinguir a publicação legal da ilegal. As constantes
restrições à liberdade de expressão deixam o jornalista inseguro: entre
publicar uma informação relevante e cometer, por isso, um ilícito e, por
outro lado, não a publicar, evitando, assim, o ilícito, ele escolhe a
segunda opção. Dessa forma, pouco a pouco, o debate público se esfria, daí
a origem da expressão. Como é fácil concluir, um sistema que incentiva o
chilling effect redunda em consequências perniciosas para os
princípios democráticos.
Parece estar claro que o critério de busca da verdade no
jornalismo não pode ser equiparado à busca da verdade em juízo. A
informação jornalística, em diversas ocasiões, demanda publicação rápida,
de modo que a demora em divulgá-la tende a gerar, no público, o
desinteresse pela notícia. Ao revés, no judiciário, há um longo rito – mediante intenso
contraditório e regras de direito probatório – para se chegar à verdade dos
fatos, ou a algo perto desse ideal. É à luz dessa consideração que o judiciário
não deveria punir o jornalista pelo simples fato de a informação publicada
revelar-se, posteriormente, falsa em juízo, desconsiderando as
particularidades do caso concreto, especialmente as evidências a que o
jornalista teve acesso ao tempo da publicação. Por isso, nos
Estados Unidos, não se pune o mero erro jornalístico.
Talvez o sistema americano, o mais protecionista à
liberdade de expressão e de imprensa de que se tem notícia, não seja
consentâneo com os valores previstos na Constituição Brasileira. Como já
advertiu Rousseau, no Contrato Social, as instituições de um país têm de
ajustar-se tanto à situação local quanto ao caráter dos habitantes. Talvez o
que seja bom para os americanos não o seja para nós.
Contudo, uma coisa é certa: um sistema político que se
pretenda democrático e declare proteger a liberdade de expressão e de
imprensa tem de tolerar, em certa medida, publicações de tom ou teor
ofensivo, notadamente as dirigidas aos governantes quanto às atividades
por eles exercidas como tais. Ele também não deve conferir prevalência
à verdade judiciária sobre a jornalística, para fins de punição, como se
em ambos os domínios valessem os mesmos meios e métodos de obtê-la.
A liberdade de expressão – valor tão caro à civilização
ocidental – é invocada justamente nas situações em que ela entra em choque
com outros valores. Se estes prevalecem, mina-se a liberdade de expressão. E
sem liberdade de expressão, não há controle do governo; não há, enfim,
democracia.
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