O Brasil do atraso insiste em assombrar nosso futuro. Não
bastasse todos os episódios de corrupção relacionados às operações de nomes
criativos da Polícia Federal (Lava-jato, Zelotes, Calicute), um escândalo
gigantesco desenrola-se nos bastidores da Receita Federal do Brasil, quase sem
visibilidade.
Há duas semanas houve uma audiência pública em
Belém, na ALEPA, a pedido do sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal
do Brasil (SINDFISCO), com a participação do deputado federal Arnaldo Jordy e
do Superintendente da Receita Federal, Moacyr Mondardo, além de representantes
de diversas entidades como OAB e MPF.
A sessão, presidida pelo presidente da ALEPA,
Márcio Miranda, teve como objetivo tornar público que foi enviado ao Congresso
Nacional, em julho deste ano, o Projeto de Lei nº 5864, que dispõe sobre a
Carreira Tributária e Aduaneira da Receita Federal do Brasil. Fruto de uma
negociação que se arrastou durante mais de um ano, o PL continha reposição
salarial, nos mesmos moldes da AGU, PF, PFN, e outras carreiras de estado
consideradas de mesmo nível que o Auditor Fiscal, além de uma pauta não
remuneratória, que reunia as prerrogativas e definições de atribuições do cargo
de Auditor Fiscal e Analista Tributário, este último compondo o segmento de apoio
dentro da carreira de Auditoria Fiscal, à semelhança de delegado e agente, no
caso da Polícia Federal.
Explicitaram, então, os auditores nessa Audiência
Pública na ALEPA, para surpresa geral, que o referido PL, produto de exaustivos
debates, resultando em projeto fechado nesta mesma Legislatura federal e com o
governo anterior, foi solenemente desprezado e, em seu lugar, caiu de
paraquedas um Substitutivo que, segundo seu relator, o deputado Welington
Roberto, do PR da Paraíba, “aprimorava” a instituição como um todo. Nesse
suposto intuito de zelar pela Receita Federal do Brasil, o deputado relator
visou atender lobby de categorias auxiliares da Receita Federal, para o que
acolheu algo em torno de 120 emendas, que versaram desde aumentos salariais até
mudanças do nome das carreiras e suas atribuições. Mas não ficou só nisso:
criou despesas não previstas no orçamento da União, ao dar novos aumentos
salariais à categorias já contempladas, e concedeu novas atribuições à carreira
de Analista Tributário, coisa que não poderia ocorrer por inexistir na lei da
época em que adentraram no serviço público via concurso, e sem alterar mesmo o
conjunto da estrutura funcional e orgânica de toda a Receita Federal, o que
criaria uma excrescência funcional: um cargo auxiliar com os mesmo poderes do
cargo principal e com estruturação no ordenamento jurídico. Em outras palavras,
transformou o projeto de lei original num Frankenstein, eivado de
inconstitucionalidades e permeado pelo vício de iniciativa, aquele que
pressupõe ser ilegal o parlamento modificar certas características de um PL
proveniente do Executivo, por haver, neste caso, uma usurpação do poder, além
de graves violações à Lei de Responsabilidade Fiscal, haja vista o aumento de
despesa sem requisitos da norma. Enfim. Continue lendo ▼
O ponto destacado na Audiência Pública foi a questão da
autoridade tributária, legalmente conferida ao Auditor Fiscal da Receita
Federal.
Pois bem, o obscuro deputado paraibano, um dos nove da
tropa de choque de Eduardo Cunha, com passado de relativa fama por ter
sido o principal implicado no escândalo dos sanguessugas, resolveu estender
atribuições e prerrogativas do cargo de Auditor Fiscal para o de Analista
Tributário, o cargo de apoio, algo como autorizar um assessor de juiz a assinar
sentenças. Questionada pela suspeita de ter assessorado o nobre deputado, a
direção nacional do sindicato dos Analistas não escondeu o anseio da categoria
de galgar o posto de Auditor por vias diferentes do concurso público, em que
pese 30% de seu efetivo ser formado por servidores que têm apenas o nível médio
de escolaridade.
Ora, pode-se até entender os anseios de uma categoria e
os “equívocos” de um deputado que quer agradar categorias auxiliares… Por que
não? Mas a ilegalidade e a imoralidade continuarão ínsitas na proposta.
Presumir-se-ia (mesóclise que nos vem até por inspiração temática) que o
governo agiria para barrar esse tipo de abuso. Incrivelmente, não foi o que
ocorreu neste episódio. Dito pelos próprios deputados, o Ministério da Fazenda
e a Casa Civil simplesmente lavaram as mãos, e o malfadado substitutivo foi
aprovado na comissão da Câmara dos Deputados por 16 votos a 13. Aqui é forçoso
ressalatar que essa tentativa de desmonte da Receita Federal se dá
coincidentemente com os avanços da operação lava-jato, pois é com os auditores
fiscais que sempre se iniciam as investigações.
Na ausência de apoio estatal, a categoria dos
Auditores decidiu que eles mesmos teriam que resistir ao engodo e, de maneira
inusitada e impressionante, se dispuseram a abdicar do dinheiro no bolso para
defender a carreira. As consequências da greve da categoria têm sido tanto
espetaculares quanto catastróficas para a economia nacional, como se pôde ver
durante as duas últimas semanas: aduana em operação padrão, cargas de importação
e exportação paradas em todo o Brasil, caminhoneiros a beira do colapso
nervoso, prejuízos de 100 milhões de reais por dia só em Santos. Some-se Foz do
Iguaçu, Zona Franca de Manaus… Como se ainda fosse pouco, a RFB decidiu admitir
o que já se desconfiava, as quedas recordes de arrecadação em âmbito federal
embutem os impactos do movimento reinvindicatório dos Auditores Fiscais. E,
aparentemente, isso passa dos R$ 50 bilhões nestes poucos meses de imbróglio do
PL nas mãos do famigerado relator.
Resumindo o enredo, que bem poderia ser de filme de
terror (o papel de mordomo ou de conde Drácula todos sabem de quem seria,
certo?): o Governo envia o projeto de lei da carreira tributária federal para o
congresso, após mais de um ano de negociações com as categorias; o relator
escolhido, conhecido por um passado de episódios controversos, transfigura o
projeto, agregando ilegalidades, como conferir atribuições privativas de
autoridade tributária a cargos auxiliares; o governo, que tem base suficiente
para aprovar com folga emendas constitucionais, incompreensivelmente resolve
não interferir; para evitar o que alertam ser a ruína do cargo, a categoria dos
auditores entra em greve, provocando bilhões em prejuízo ao tesouro e às
empresas que operam no comércio exterior.
Como sempre, o distinto público paga a conta.
Fonte: RG 15/O Impacto
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